Essa avenida já caminhei, mas nessa rua jamais pisarei

Posted: | Por Felipe Voigt | Marcadores:
Caminhava pela rua da feira
nas primeiras horas da tarde.
Mas feira não havia ali.
Feira agora só na próxima quarta-feira.

O sol ardia e levantava do asfalto
uma onda de calor formando ondas
mascarando imagens no horizonte.
Tudo o que via era disforme.

Triste subida essa que faz descer
gotas de suor com gosto de lágrima suada.
Suor é o choro da pele castigada.
Cada passo é um açoite.

Enquanto eu subia, ela descia desfilando
a aurora das primeiras horas
de sua juventude ainda tímida
que reluzia seu corpo de mulher
em seu rosto de menina.

Essa mesma calçada que dividimos agora
dividi com outras pessoas no passado
O calor era diferente, assim como as imagens disformes.
Caminhava como quem mostrava-se
ao mundo pela primeira vez.

O rosto escondido por parte do cabelo,
delicadamente tocado pelo vento,
que logo era retirado por uma das mãos
revelando um olhar assustado pela
avenida que se erguia em sua frente
ao dobrar a esquina.

O vento delicado para ela
tornava-se tempestuoso para mim.
Minhas lentes escuras violentamente
chicoteadas pelos cabelos
que trago até os ombros.

Pequenas frações de segundos
me fizeram notar sua beleza
de menina quase mulher.
Para onde ia não sei dizer.
De onde veio também não.
Apenas me lembrou da dura quebra
de ingenuidade e inocência
que esses dias fartam em trazer.

Não estávamos mais sozinhos na rua.
Havia agora um carro sendo conduzido
por um homem arqueado, de cabelos alvos
e pele riscada e furada pelo tempo.

A velocidade foi reduzida
seu rosto ganhou semblante ácido
a boca sorria revelando dentes
podres e babados.
Ela vinha em minha direção,
os olhos dele iam no caminho dela.

Aquela sucata humana conduzida
por uma sucata industrial
revelou um estrondoso som
de beijo estalado, jogado pelo vidro
num ritmo nojento e contínuo.

Cruzamos a mesma linha ao mesmo tempo
Ela, eu e ele. Ele, eu e ela.
E aquela boca babada e estridente
jogando beijos indigentes.

Beijos que ricochetearam em mim
e nunca chegariam aos ouvidos
daquela pequena flor que ainda
sorria tímida, desflorando para o mundo,
tirando os cabelos do rosto ao passar
pelo homem barbudo e cabeludo e tatuado
que a bloqueou da visão do velho
de cabelos alvos e rosto todo babado.

Ela seguiu andando e movendo
o cabelo do rosto enquanto seu olhar
fitava o horizonte erguido.
Mas seus olhos buscavam pela lateral do olho
o andar daquele homem rústico e
de visual agressivo a passar ao seu lado.

Num piscar eram olhos de menina
No outro, olhos de mulher.
Seguiu sorrindo pela avenida larga
que acabara de ingressar.

Do outro lado, o velho seguia na sucata
e limpava a baba do canto da boca
e descia rindo a rua estreita e asquerosa
que um dia há de terminar.

3 comentários:

  1. Carol Viana disse...
  2. a primeira coisa que me vêm a cabeça é a imagem de um ESCUDO... de metal rústico, cobre talvez, mesmo porque esse material mostra o quanto COBRE e PROTEGE.
    Um ESCUDO DE FORÇA protegendo uma flor inocente do futuro nefasto que um dia inevitavelmente ela irá conhecer.
    A beleza do ESCUDO q retarda esse momento...
    Lindo, Fê!

  3. Carol Viana disse...
  4. ok, menina... segue mais um pouco... não precisa ser agora... não precisa ver isso ainda...

  5. Paula Lopes disse...
  6. "Beijos que ricochetearam em mim
    e nunca chegariam aos ouvidos
    daquela pequena flor..."

    Esse é você!

    Um homem que se colocaria entre o beijo de um velho e a pureza de uma menina.
    Um homem que, se pudesse, protegeria todas as pequenas flores que cruzam seu caminho.
    Um homem que cresceu entre mulheres e aprendeu a ter a sensibilidade necessária para entendê-las.
    Um homem que sabe ser sincero, usar palavras cruas e adquirir o respeito e admiração de quem as ouve.
    Um homem que, apesar de considerar a dor importante, naturalmente se dispõe a ser o ombro que alivia nosso sofrimento.
    Um homem que eu admiro e respeito pra caramba!

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